29 de Maio de 2008, Cascais
Adeus Tio Té, consegue ver-nos daí?
Consegue ver o mar, o rio em frente da sua janela, depois já junto ao Bugio, ao Cabo da Roca? Consegue com certeza ver o mar da Berlenga! Transparente e frio, tão frio que aposto que não lhe apetece um mergulho: primeiro vai aquecer, já sabemos como é! Depois há-de ficar a tiritar e a chamar palavras feias à água, ou melhor, à temperatura da água. Como se ela tivesse a culpa!
Pois é, nós por cá vamos andando, trabalhando e descansando, com alguns intervalos para lembrar. Dizem que o ser humano é o único animal que consegue lembrar. Porque será?
Lembro-me muito bem de tanta coisa na minha vida que incluiu o tio té. Férias e dias normais, visitas certas a nossa casa logo que o meu pai morreu e duras críticas do tio té. Uma vez discuti consigo; estava zangada com tudo e todos, furiosa porque o meu pai morrera e ninguém me explicara o que era isso de morrer, deixar para trás coisas inacabadas, filhos a crescer, mulher nova, sei lá, tanta coisa que não nos explicam e depois exigem que nos portemos à altura... E então discuti consigo, lembro-me de lhe dizer que não precisava que me educassem, já tinha quem o fizesse. Lembra-se? Não tenho muito orgulho nessa discussão, devo dizer.
E podia escrever muitas páginas com outras lembranças menos vergonhosas para mim. Mas agora só penso, mais uma vez (isto deve ser uma sina), nesse lugar estranho e estrangeiro onde o tio té está. Gostava de saber onde é, quais as coordenadas, como se chega lá. Só para ter a certeza que isso aí é mais bonito, mais calmo, sem injustiças ou infelicidades, sem tempo….Será que é aí que está, agora que não podemos ir ao hospital militar de Belém para apertar nas nossas a sua mão, ouvir a sua respiração, ontem já a custo?
Senão for aí, então ainda é mais confuso. Porque as certezas deixam-nos descansados, é bom arrumar no espaço e no tempo as experiências e as pessoas que tiveram a ver com essas experiências a que vamos chamando vida, às vezes sem muito entusiasmo. Que lugar é esse, tio té?
Não, não tenho ciúmes, acho que faz bem em ter partido para águas mais fundas e mais bonitas. Fico contente por si, sei que a partir de ontem já era difícil aguentar uma parte do seu corpo que se tornou, por causa de um bicho, indomável. Fico contente por já não ter dores e por saber que elas não voltam. Acho que ficamos todos contentes e aliviados por saber que está melhor.
Deixa-nos uma herança brutal e eu sou só sobrinha: tanta coisa que fiz consigo, com a tia Carmo, com os primos. Tantos dias de férias, tantos sítios, tanta fotografia para a frente e para trás. Tanto parafuso e anilha, santo Deus, tio té! Jure que deu uso a todas as anilhas ferrugentas que teimou em limpar, em limar e em tornar a encaixar! E eu prometo que nunca mais me esqueço de guardar a chave da cozinha velha no sítio!
Temos tudo isso para arrumar, um verdadeiro património! Às vezes vai botar lágrima por causa dessa maldita coisa que os portugueses nomearam de saudade, uma bola que aperta na garganta e a certa altura parece não deixar passar o ar. E aí precisamos, todos nós, da garrafa de oxigénio. Mas as lágrimas secam e voltamos a perguntar: onde é que está, tio té? Mande uma mensagem se puder. E se não tiver rede, lá teremos que continuar a imaginar esse lugar, o seu sorriso de malandro, e quem sabe, um bote pequeno de madeira onde continua a dar os seus passeios, quando não está a olhar a sua prole…
Muitos beijinhos da sua sobrinha e até sempre
Constança
Tuesday, June 3, 2008
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2 comments:
Constança, Querida Amiga
Tiveste a sorte de ser sobrinha do mais desejado dos Tios.
Revejo-me em todas as tuas palavras e também eu me pergunto "onde foram parar todas essas anilhas que abrilhantámos... Ao nosso coração? Sem dúvida! Para sempre gravadas, anilhadas.
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